Cresci achando, mesmo, que eu devia àquelas pessoas a
oportunidade de viver num país que logo seria democrático. Radicais ou não,
essas pessoas tinham o que o ser humano, em minha opinião, tem de melhor: o amor.
Um amor tão grande pelo povo, uma empatia tão enorme pela miséria (que muitos
deles nunca viveram), que os mobilizou a colocar a vida em risco, a viver sob a
ameaça da tortura e do desaparecimento. A tortura meus amigos, tem natureza
latente, a simples ameaça é concreta, não simbólica.
Vi Tancredo morrer, Sarney assumir. Vi um sem número de
moedas e zeros cortados. Acompanhei as eleições de 1989 com o mesmo brilho nos
olhos que tinha a minha mãe. Mulher guerreira lutadora, que embora não tenha
sido presa, teve perdas sofridas causadas pela ditadura. Era a primeira eleição
de um país democrático no qual eu cresceria com direitos políticos e liberdades
individuais. Vi o Collor bloquear toda a grana que a minha família tinha. Os
anos do meu pai em Angola, trabalhando em meio a guerra, em uma obra na qual
volta e meia explodia uma mina. Vi o Collor sofrer um impeachment. Não entendia
muito bem naquela época, por que razão uma figura como o Brizola, ou os amigos
de esquerda da família viam com preocupação, a retirada do primeiro presidente
eleito diretamente desde 1960, apesar de lamentarem o governo collorido.Vi FHC
chegando, finalizando a estabilização econômica, privatizando recursos naturais
e muita gente perdendo o emprego, muito mais do que agora.
Vi Lula chegar cheio de esperança, mas com discurso mais
moderado. Propunha um desenvolvimento ancorado pela parceria com as empresas. O
Brasil tinha, então 32 milhões de pessoas passando fome. Um índice de
analfabetismo digno de países de descolonização tardia. Hoje, a moça que me
atende na loja, usa aparelho e estuda. Vi uma mulher candidata. Essa mulher era
uma daquelas que eu aprendi a admirar desde criança. Vi essa mulher vencer uma eleição a despeito
de toda a grosseria e machismo embutido nos argumentos contra ela. (Reparem o
quanto os parlamentares usam a palavra “incompetência”, “irresponsabilidade”,
termos não usados para falar de Lula, p. ex.). E a vejo agora se defender com a mesma coragem que sempre admirei 14h de absurdos.
Agora, ainda espantada e incrédula, vejo, não só a
constituição, mas o capítulo mais bonito da nossa história, ainda que haja uma
ou outra mácula, serem rasgados. Vejo um teatro tão óbvio que cansa. Talvez por
Kafka já ter escrito um roteiro tão similar, talvez pela sensação de dejá-vu
histórico. As poucas conquistas sociais que tivemos escorrem, agora, entre os
dedos. Escorrem também os planos para o futuro. E o medo desse futuro parece
uma onda havaiana me engolindo.
Nasci no ano em que se celebrava o retorno com alegria.
Antes dos 40 vejo tudo retornando as trevas. Essas pessoas que chegavam e
contavam suas histórias encheram meu imaginário de heroísmo para sempre. As
crianças vibravam com He-man, eu também. E vibrava igualmente com as histórias
de Helena Besserman Vianna, Inês Etienne, Dilma Roussef, Flávio Tavares, Luis
Werneck de Castro, Lúcia Murat, e tantos outros. Pessoas que tiveram uma
coragem que eu sempre achei que não teria.
Apesar dos destinos que o país seguirá agora, fico feliz de
perceber que, vocês com sua histórias, abdicações e sacrifícios plantaram esse
amor e essa coragem em mim. Não sei ainda se sou tão forte quanto vcs foram.
Mas espero que essas gerações que vieram depois de vocês demonstrem agora, a
mesma determinação, o mesmo amor por aquele outro que é desconhecido e cuja
miséria nunca vivemos, que vocês nos ensinaram. ´
É triste esse momento, mais muito mais triste será ter que,
no futuro, dizer aos meus alunos, que nós , também, “assistimos a tudo bestializados”.
