quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O começo do fim?




Eu nasci no ano da Lei da Anistia. Sempre gostei disso. Nasci num ano em que amigos, pais, filhos se reencontram, alguns depois de muitos anos, outros de muita dor física também.

Cresci achando, mesmo, que eu devia àquelas pessoas a oportunidade de viver num país que logo seria democrático. Radicais ou não, essas pessoas tinham o que o ser humano, em minha opinião, tem de melhor: o amor. Um amor tão grande pelo povo, uma empatia tão enorme pela miséria (que muitos deles nunca viveram), que os mobilizou a colocar a vida em risco, a viver sob a ameaça da tortura e do desaparecimento. A tortura meus amigos, tem natureza latente, a simples ameaça é concreta, não simbólica.

Vi Tancredo morrer, Sarney assumir. Vi um sem número de moedas e zeros cortados. Acompanhei as eleições de 1989 com o mesmo brilho nos olhos que tinha a minha mãe. Mulher guerreira lutadora, que embora não tenha sido presa, teve perdas sofridas causadas pela ditadura. Era a primeira eleição de um país democrático no qual eu cresceria com direitos políticos e liberdades individuais. Vi o Collor bloquear toda a grana que a minha família tinha. Os anos do meu pai em Angola, trabalhando em meio a guerra, em uma obra na qual volta e meia explodia uma mina. Vi o Collor sofrer um impeachment. Não entendia muito bem naquela época, por que razão uma figura como o Brizola, ou os amigos de esquerda da família viam com preocupação, a retirada do primeiro presidente eleito diretamente desde 1960, apesar de lamentarem o governo collorido.Vi FHC chegando, finalizando a estabilização econômica, privatizando recursos naturais e muita gente perdendo o emprego, muito mais do que agora.

Vi Lula chegar cheio de esperança, mas com discurso mais moderado. Propunha um desenvolvimento ancorado pela parceria com as empresas. O Brasil tinha, então 32 milhões de pessoas passando fome. Um índice de analfabetismo digno de países de descolonização tardia. Hoje, a moça que me atende na loja, usa aparelho e estuda. Vi uma mulher candidata. Essa mulher era uma daquelas que eu aprendi a admirar desde criança.  Vi essa mulher vencer uma eleição a despeito de toda a grosseria e machismo embutido nos argumentos contra ela. (Reparem o quanto os parlamentares usam a palavra “incompetência”, “irresponsabilidade”, termos não usados para falar de Lula, p. ex.). E a vejo agora se defender com a mesma coragem que sempre admirei 14h de absurdos.

Agora, ainda espantada e incrédula, vejo, não só a constituição, mas o capítulo mais bonito da nossa história, ainda que haja uma ou outra mácula, serem rasgados. Vejo um teatro tão óbvio que cansa. Talvez por Kafka já ter escrito um roteiro tão similar, talvez pela sensação de dejá-vu histórico. As poucas conquistas sociais que tivemos escorrem, agora, entre os dedos. Escorrem também os planos para o futuro. E o medo desse futuro parece uma onda havaiana me engolindo.

Nasci no ano em que se celebrava o retorno com alegria. Antes dos 40 vejo tudo retornando as trevas. Essas pessoas que chegavam e contavam suas histórias encheram meu imaginário de heroísmo para sempre. As crianças vibravam com He-man, eu também. E vibrava igualmente com as histórias de Helena Besserman Vianna, Inês Etienne, Dilma Roussef, Flávio Tavares, Luis Werneck de Castro, Lúcia Murat, e tantos outros. Pessoas que tiveram uma coragem que eu sempre achei que não teria.

Apesar dos destinos que o país seguirá agora, fico feliz de perceber que, vocês com sua histórias, abdicações e sacrifícios plantaram esse amor e essa coragem em mim. Não sei ainda se sou tão forte quanto vcs foram. Mas espero que essas gerações que vieram depois de vocês demonstrem agora, a mesma determinação, o mesmo amor por aquele outro que é desconhecido e cuja miséria nunca vivemos, que vocês nos ensinaram. ´


É triste esse momento, mais muito mais triste será ter que, no futuro, dizer aos meus alunos, que nós , também, “assistimos a tudo bestializados”.