Quando se discute a América Latina no cotidiano, dois
elementos saltam aos olhos. O primeiro é a forma longínqua com que os
brasileiros tratam a região, ou seja, como se se tratasse de algum lugar difuso
e distante do qual não fazem parte. O segundo é o corte temporal que se faz com
relação às ditaduras que tomaram o continente nas décadas de 1960 e 1970.
Trabalhando com a cultura urbana atual em países da região
como um todo, mas principalmente do Cone Sul, chocou-me o olhar estereotipado
que temos de nossos vizinhos, bem como a falta total de informações sobre a
história desses países tão próximos.
Nas escolas o espaço para se trabalhar América Latina na
disciplina de História são apenas dois: as independências e as ditaduras. Com
relação ao primeiro período tudo é ensinado com certa rapidez como se nos
envergonhássemos de nossa opção monárquica enquanto a região optava por
repúblicas. Com relação ao segundo momento, o conteúdo escolhido acaba sendo o
da participação brasileira nos aparatos de repressão dos demais países do Cone
Sul na denominada Operação Condor. Em ambos os casos optamos por não analisar
as opções políticas que geraram no futuro uma cultura política na região, ou
optamos por falar de nós, Brasil, esperando que o nosso imperialismo não
transpareça.
MEMÓRIAS
A importância da construção e reconstrução da memória
relativa aos períodos ditatoriais na América Latina tem diversas dimensões:
política, social, pública, privada, psicológica, jurídica, etc. A necessidade
dos mecanismos e dispositivos de reconciliação são amplamente e, cada vez mais,
discutidos tanto no âmbito nacional quanto internacional, vide as decisões mais
recentes relativas à ações movidas em organizações internacionais como a OEA.
Sem dúvidas o Brasil encontra-se mais “em dívida” com seu
passado recente. Por um lado a insistência de muitos setores envolvidos na
repressão em negar suas ações mais vis, o número de herdeiros dessa memória e
de sobreviventes atuantes na busca pela verdade torna a questão ainda muito
polarizada. Por outro lado, o caráter secreto de tantas decisões, a
compartimentação das funções dentro do aparato repressivo que acarreta uma
espécie de compartilhamento anulador de culpas e responsabilidades no âmbito do
indivíduo, o luto não ultrapassado, enfim, torna a tônica dos discursos, de um
lado e de outro, mais relacionada à esfera da paixão que da mera racionalidade
política.
No entanto, por mais que muitas feridas sangrem novamente,
antes de serem definitivamente cicatrizadas na história e na memória nacional é
imprescindível que se faça a justiça e que a verdade sobre os fatos venha à
tona.
Em grande parte, no Brasil e na Argentina o trabalho de
construção dessa memória, de estabelecimento dos fatos e denúncias, coube às
mulheres. Mães, filhas, irmãs, viúvas e, claro, sobreviventes. Algumas vezes, esses
papéis se misturam. Misturam-se as dores e as vitórias. Num relato é possível
observar a dor da perda de um companheiro, ao mesmo tempo em que se conquista a
esperança ao descobrir-se mãe. Os relatos dessas mulheres e a confusão de
sentimentos própria de momentos em que os limites humanos são postos à prova,
são tanto a essência da memória desse período da mesma forma em que constituem,
também, a razão principal da dificuldade em se punir os crimes ocorridos. Pois
a desumanização que a tortura provoca pode ter fim com a inserção da verdade
sobre o período no imaginário político do senso comum, ou seja da incorporação
dessa memória e na sensação de justiça alcançada, portanto de legalidade. No
entanto, é nesse mesmo momento em que o torturador se desumaniza
definitivamente nos aspectos mais privados de sua vida. Enquanto aguardam por
justiça, o constrangimento público tem sido umas das estratégias utilizadas
pelos movimentos que lutam pela responsabilização por parte do Estado e punição
dos criminosos desse período.
Sendo essa memória em grande parte feminina o tema ganha
contornos específicos. Historicamente o espaço destinado às mulheres, muito
raramente, vai além da esfera privada. Contar uma história, construir uma
memória pública partindo de um lugar social acostumado e destinado à esfera
privada já se mostra um desafio, mesmo ignorando os demais aspectos “delicados”
e secretos que envolvem a construção de uma memória de caráter trágico e
desumanizante.
Há a priori três gerações distintas de construção dessa
memória que enfrentaram e viveram de forma diferente as relações sociais de
gênero. As gerações de mães das militantes, a das militantes e a de suas
filhas. Embora as mulheres, ao longo
dessas gerações, tenham conquistado muitos espaços, algumas questões permanecem
as mesmas.
As mulheres tem ocupado cada vez mais o espaço público,
inclusive em cargos de alto poder decisório como é o caso de Brasil e Argentina
no momento. Mas até agora, essa inserção tem sido relativamente tímida, talvez
também pela falta da construção dessa memória de forma objetiva e definitiva.
No entanto muitas das mulheres que ocupam esses espaços públicos hoje é egressa
das lutas contra as ditaduras da América Latina na segunda metade do século XX
ou herdeira delas.
De um modo geral, é em função de conflitos violentos, que as
mulheres encontraram brechas para uma maior atuação no espaço público. Em situações
em que perdem temporária ou definitivamente seus provedores. Na América Latina
não foi diferente, sendo ainda mais recente uma participação mais
significativa.
À toda a problemática já citada, intrínseca à construção de
uma memória social e política de períodos trágicos e traumáticos, soma-se o
caráter de gênero que individualmente minou a legitimidade dos discursos e das
denúncias por virem do lugar social ao qual está relacionada ao longo da
história com categorias como maldade e loucura.
Desde tempos imemoriais os discursos femininos são reduzidos
a um “não” controle das emoções, a uma “não” capacidade racional. Fosse sob a
forma da “misoginia medieval” analisada por Luís Costa Lima, ou com relação
muitas vezes aos papéis designados à maioria das mulheres dentro das
organizações de combate à ditadura. Recorre-se ou à infantilização das
mulheres, ou à tentativa de atribuir suas ações ou palavras ao âmbito da
loucura, da histeria, do “exagero”. Isso, naturalmente se dá, igualmente,
quanto ao teor de seus relatos históricos. “Esta senhora enlouqueceu.” Ou
“Larga essa vida de militância política, menina, você nem sabe onde foi se
meter”.
No caso das ditaduras latino americanas a inserção feminina
no espaço público tem a marca da violência e do fascínio. Vistas como heroínas
por uns, como aberrações por outros o fascínio é corrente. Na época dos fatos,
sua condição feminina horrorizava ainda mais os homens da repressão. Eram
duplamente culpadas: por serem comunistas desafiando o poder estatal
instituído, e por serem mulheres que, ao escolherem o caminho da luta política,
rompem com os papéis sociais preestabelecidos e, portanto, com a ordem.
Fascinam e amedrontam o que faz aumentar, diversas vezes a violência
principalmente quando se mostraram capazes de resistir. Com relação à
violência, foram torturadas por homens e, assim, as humilhações e torturas de
cunho sexual foram mais correntes do que com relação aos presos do sexo
masculino.
Naturalmente que pelos diversos depoimentos dos sobreviventes
sabemos que os homens também passaram por violações sexuais, no entanto há
menos registros da tortura sexual entre os interrogatórios do que no caso das
mulheres. As presas mulheres tinham seu corpo utilizado pelos homens que
compunham o aparato repressivo, também nos momentos de folga, como fonte de
diversão e relaxamento.
O papel social feminino navega ao longo dos períodos
históricos por mares de ambiguidades: a santa e a louca, a bruxa e a criatura
infantil e vulnerável, a mulher e a militante. No entanto a capacidade de
resistência, de convicção política, e de luta femininas, acabava por retirá-las
aos olhos de diversos segmentos sociais da “categoria feminina”. São comuns os
depoimentos de mulheres que aderiram à luta armada, de ouvirem de soldados e de
torturadores que eram “sapatões”.
Também possui dupla
dimensão as experiências da prisão e da clandestinidade. A mulher enquanto
clandestina tem vantagens justamente em função do entendimento de que mulheres
oferecem menos riscos. Uma casa em que more uma mulher que quase não sai, é a
casa de uma moça trabalhadora ou recatada. Um homem chamaria mais atenção. Um
jovem casal também desperta menos suspeitas. Não raro as mulheres nas ações
cumpriam o papel de falsas namoradas exatamente com esse fim.
Por outro lado a situação feminina nos “porões” de tortura
acaba assumindo outro teor de degradação e humilhação que reside no fato mesmo
de serem mulheres, As mulheres transgridem duplamente e isso se faz presente na
prisão. São punidas e torturadas não só pelas informações que podem fornecer ou
pela ameaça que representam à estabilidade do sistema com suas ações
subversivas, como também pelo fato de terem ignorado o papel social previamente
delineado para o gênero feminino restrito à esfera privada.
Uma vez que ao longo da história a mulher esteve restrita ao
universo da casa e da família, aquela que opta por um carreira diferente e uma
maior participação política enfrenta preconceitos dentro e fora das
organizações de resistência, armada ou não, da qual participaram. Ao contrário
dos homens, como já foi dito, elas transgridem duplamente e por isso significam
uma ameaça à estabilidade política e cotidiana.
Concluímos, assim, que a questão de gênero está intimamente
ligada à dificuldade de se estabelecer a verdade dos fatos sobre os anos de
chumbo no Brasil. Além do desejo das Forças Armadas em manter suas ações mais
vis ocultas, uma vez que grande parte dessa memória é feminina, torna-se mais
fácil deslegitimar o discurso. Por outro lado a supressão dessas verdades
constitui, também, uma barreira à participação política feminina nos dias de
hoje. Muito embora três das maiores economias da região possuam hoje presidentas
(Cristina Kirchner – Arg, Dilma Roussef – Br e Michelle Bachelet – Chile), há
ainda um déficit muito grande de participação política nesses países. Pois
quando não há memória também não há trajetórias heroicas que inspirem, não há
cultura política.



Extremamente coerente e bem escrito, retratando com clareza e perfeição a situação da mulher no contexto das ditaduras, da militância, das torturas, da solidão, do isolamento, do medo, da coragem imensa no meio de tanto pavor. Muitas vezes sem apoio ou admiração por sua postura, inclusive sendo de certa forma mal vista e desvalorizada dentro desse cenário por outras mulheres e homens..., Para uma mulher é muito mais complicado participar de tudo isso e exige uma garra impressionante. O machismo por vezes fazia com que se questionasse uma opção pela luta e pelo risco. Mas sempre foi, em todos os tempos, em qq parte do mundo, sem dúvida, uma participação essencial e vital em todas as frentes, formas e níveis de luta, muito necessária, importantíssima, colaborativa, extremamente exigente, enormemente corajosa e diferenciada. Me lembro bem dos papos com Maria Werneck, e da admiração que me causava saber que ela era tão forte, firme nos seus ideais, segura de seus princípios, capaz de morrer por suas idéias, de brigar, de lutar, de ser torturada, de defender a qq custo Olga Benário na tentativa de evitar que a mandassem p a morte ( mas ela mesma estava se arriscando muito), na capacidade de suportar gritos de desespero e dor estando numa cela, amigos chegarem torturados nas celas, saber que poderia ser a próxima, e assim por diante.... mais tarde visitar o filho e sem conseguir vê-lo inúmeras vezes, voltava para casa com camisas sujas de sangue que lhe eram entregue por pura maldade...E tanta gente magnífica e especial que fez parte de tudo e não pode ser esquecida, pq é parte importante de períodos terríveis de nossa história, que não podem deixar de ser lembrados e e ao manter essa memória viva não permitir que isso se repita jamais....
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