quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Com a palavra: Apesar de caminhos


Pela rua caminho
sem saber para onde vou
Pela rua caminho
sem saber onde estou

Procurando respostas e perguntas
Pela rua caminho
Apenas querendo saber,
quem sou?

Na beleza da noite me inspiro
na luz de um poste, em um banco de praça
e me vejo como a lata de lixo que sou

E apesar de caminhos,
sem pensar
para onde vou
me pergunto

Por Gabriel Romero
Foto Rodrigo Carvalho

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O cidadão temporário da cidade parcial

Sávio quando nasceu recebeu esse nome em homenagem ao grande craque do time do pai. Nasceu na cidade de Natural. Um lugar muito bonito, sem dúvidas. Assim como Sávio, a cidade recebeu o nome também por uma razão. Natural havia se estruturado em função de sua exuberante natureza. Quase toda a economia se baseava nessa natureza da cidade e naturalidade de sua gente. 

Ali surgiu um povo que se dizia leve, mas que aos olhos de quem vinha de fora parecia quase leviano. Muito alegre e festeiro, mas um tanto dessa euforia beirava a irresponsabilidade. Natural tinha tanta beleza, tinha tudo já ali, na mão, que seu povo acostumou-se. Acreditavam que mereciam e ponto. Lá no fundinho achavam que tudo se resolveria, se organizaria, se faria "sozinho".  Afinal, tudo que havia de melhor na cidade já estava pronto, ali, para ser desfrutado.

Sávio cresceu um típico naturalense. Passava a semana no caos. De segunda à sexta, mecanicamente, vivia o desgaste da desorganização, da desunião, de todos os transtornos. Mas no fim de semana... ia à praias, eram várias, subia as montanhas, tomava um banho de cachoeira e terminava o dia aplaudindo o pôr do sol. Ia dormir se achando o cara mais sortudo do mundo por causa daquele dia, daquele sol. 

Sávio tinha um trabalho temporário, num consórcio temporário que construía uma das muitas pontes temporárias de Natural. A ponte serviria para desviar o trânsito temporariamente, enquanto era executada uma obra para construir uma lagoa em Natural. A cidade tinha praias, cachoeiras, montanhas, mirantes, trilhas, etc. Mas essa lagoa que estava sendo construída, traria investimentos, empregos, desenvolvimento e segurança para aquela área. O povo sabia que na realidade seria uma área para os turistas. Sabiam que não teriam acesso ao espaço que seria construído. E continuavam dormindo todos os dias pensando que os milionários que frequentariam a lagoa é que tinham inveja deles, pois não viviam todos os dias naquela cidade incrível em que o transporte e o trânsito eram vergonhosos, onde os empregos eram temporários ou sazonais, em que tudo era difícil, árduo, arriscado mal pago ou não funcionava.  

Foto: Rodrigo Carvalho

Era como todo naturalense, um cidadão temporário. Mas antes de tudo era um cidadão temporário consciente. Alguns assumiam que não tinham muita paciência de ficar pensando nas mazelas da cidade, preferiam "curtir" o que ela oferecia, de graça é claro. Alguns confessavam que preferiam não ter que se aborrecer, e viam o lado bom de não ter todo esse trabalho. Outros para não se sentirem culpados, diziam logo que tudo estava errado, como quem justifica por que nem valeria a pena começar. No fundo sabiam que se natural realmente funcionasse e se organizasse eles também teriam que funcionar e se organizar, e aí, dá uma preguiça...


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Com a palavra: Amor Cotidiano





Aquela garota, de cabelos ao vento

Com cabelos vermelhos, andando na rua a vejo

Ah, o amor, penso eu

E, quando ela passa por mim,

inalo seu doce perfume, flutuo

Agora, meu coração, agora. Bate no ritmo de seus passos


Ao me deitar me dou conta

Sou um apenas mais covarde

Porque não disse ao menos um olá?

Um abraço perdido,

Um beijo não encontrado

Um amor ao vento


E, quando finalmente não há mais saída,

em meu leito de morte eu recordo.

Ontem, eu a vi na esquina.


E percebo que, essa menina.

A de cabelos vermelhos que tanto me encanta,

Seria a mesma que eu não tivera coragem de dizer um olá dez anos 

atrás.

E finalmente percebo que a vida...

A vida não passa de uma ilusão.


Por Pablo Accioly

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Choro



Choro por dentro e por fora. Por dentro pois o choro não precisa virar lágrima para ser doído, para ser concreto. Ás vezes não dá para segurar e, tudo bem, eu não estou nem aí. Ás vezes ele vem para fora mesmo que eu lute, e muito, para guardá-lo dentro. 

Choro por dentro, quando vejo uma senhora acompanhada de um menino, com o pé engessado, descer do ônibus na entrada do morro São Carlos, voltando de um dia inteiro de espera no hospital, e tomando fôlego para chegar lá em cima. Choro por dentro e por fora, quando vejo o sorriso surpreso do mendigo catador no Largo do Machado recebendo o refrigerante gelado de minhas mãos. Aquele refrigerante que eu não quero mais, mas que levo comigo até achar alguém que o deseje. Afinal querer e desejar, volta e meia, são coisas bem diferentes.

Choro quando vejo meninos prendendo outros meninos em postes e cortando suas orelhas como se vivessem em estado de natureza*. Perco a fala como se assistisse a uma versão ao vivo de O Senhor das Moscas*. Choro pensando que nenhum dos meninos, por razões diferentes, entenderia minha comparação. Choro pelo menino negro na calçada do Leblon que olha, distraído, como se por um segundo esquecesse de tudo, o brinquedo tão bacana na mão daquele outro menino, branco que espera o sinal fechar. 

Choro quando vejo a injustiça e a sordidez estampados na capa da revista, na primeira página do jornal. Choro quando percebo os tantos que reclamam e continuam consumindo a sordidez e a injustiça do jornal e da revista. Choro ainda mais quando vejo que, muita gente que poderia ir além, se detém, ali, na frase, na parte, na legenda da foto. Choro em pensar que, tantas vezes, o autor da manchete se satisfaz tanto com a incerteza e a ignorância, quanto seu leitor.

Choro, claro, quem não (?), ao ver tanta coisa mudar de mão, perder o rumo, o tom. Choro ao passar pelo caminho que fazia para ir à escola e noto a padaria tradicional, fechada, a placa de aluga-se/vende-se. Choro, perdida numa cidade de referências pré-fabricadas. Sinto-me como se fosse uma criança que não sabe para onde ir. Choro quando lembro quem eu sonhava que seria possível ser. 

Choro sem chôro na feira. Sem arte na rua. Enquanto tudo parece azul, cada vez mais, fica quem sem cor e sem som. Choro pelo fato de existir a necessidade de se recorrer à justiça para garantir às pessoas o direito ao seu espaço. Choro quando o umbigo é maior que o nós. Quando percebo que tudo de nada importa, afinal, ainda tem cerveja. Fica lá o trapezista de todos nós solto no ar enquanto dá, ou enquanto houver chão. Fica sem palco o ator. Fica sem harmonia a canção. Fica um marasmo só. 

Choro quando vejo tantas coisas de que me orgulhei perderem a função. Parece não haver relação entre as coisas com as quais se compactua e o que se prega. Choro, bastante, pela minha profissão. Pelo que fizeram dela, com ela. Choro, então, por um pouco de coerência enquanto continuo atenta para não perdê-la de vista. 

Choro, às vezes de agonia. Choro de ver cada vez mais calada aquela voz.  De perceber que por lentes distorcidas, sem muito foco nos confortamos em abrir, mesmo, mão da cidadania. Armamos sempre esse desbotado "circo sem futuro"* onde somos os palhaços sem sorriso, somos o desânimo dos animais esquálidos. Choro porque continuamos comprando discursos vis, tristes, secos, envelhecidos. 

Essa semana choro de indignação, choro em solidariedade, choro de dor, de verdade, choro de medo, choro por mim, pelo futuro, por todos e tantos nós. Choro, agora, realmente para botar para fora. Choro para fugir, para não encontrar. Choro, por fim, para ver se quando eu abrir os olhos, tudo isso foi embora.




*estado de natureza - Momento anterior ao Estado em que valia apenas a lei da força e não havia justiça. Período que precede o "contrato social".
leia mais sobre estado de natureza

* O Senhor das Moscas - Lord of the Flies - escrito por William Golding, 1954.
Filme (Leg, Dir. Peter Brook)

* Menção à música: "O Palhaço do Circo sem Futuro" - Cordel do Fogo Encantado


sábado, 8 de fevereiro de 2014

Os calouros e os calados



A semana de volta às aulas, na verdade é um processo, certo? Compram-se livros, estojos, mochilas, tênis, etc. É um verdadeiro natal prolongado para alguns setores do comércio e da sociedade. Para os filhos das classes médias e altas, é claro. Os mesmos que ocupam a maior porcentagem das vagas nas universidades, mesmo com o sistema de cotas. 

É nesse período do ano que surgem nas ruas os calouros com o corpo pintado e um copinho de moedas na mão. O clima é de festa. A chegada na universidade é, sem dúvidas, um momento quase mágico. Agora estudaremos aquilo que nos interessa. A partir desse momento, cuidaremos nós mesmos da nossa trajetória educacional. Por um lado, os pais já não podem mais intervir junto à direção ou professores. Por outro lado a liberdade de escolhas aumenta. É na universidade que conheceremos as pessoas que farão parte da nossa vida adulta. Agora o professor não é apenas o chato que te manda guardar o celular, é o seu futuro empregador ou aquele que vai indicar você para o emprego, então, melhor impressioná-lo.  

Os calouros tentam nos sensibilizar para doar dinheiro para as choppadas. E, a professora que vos fala, fica muito irritada com tudo isso. Antes de qualquer análise, gostaria de deixar claro que na faculdade que cursei não havia esse sistema. O trote ou recepção de calouros consistia em doação de livros didáticos ao PVNC* e sentar com os veteranos para uma cerveja paga com nosso dinheiro, calouros e veteranos. 

Mas afinal, por que razão eu me irrito com os pobres calouros da universidade pública? 



Pois a sociedade que defende a justiça com as próprias mãos, que diz "bem feito" ao menino que foi trancado no poste nu e teve a orelha cortada, enquanto assiste ao canal de notícias via gato na TV à cabo, é a mesma que se sensibiliza com a história do "mendigo gato" - branco, louro de olhos azuis - quase um "mendigo gringo". 

Qual o destino de uma sociedade que acredita que uma bolsa do governo no valor de R$ 90,00 fará com que o pobre viva "encostado no governo sem trabalhar", que ignora as crianças famintas na rua (que um dia poderão estar trancadas em postes) e doa, sorrindo, R$10,00 para os filhos da elite encherem a cara de álcool na chegada ao curso de medicina? 

Acham que não vale a pena dar R$2,00 ao indivíduo que mora na rua, não tem WC, cozinha, comida, colchão. Que é roubado durante a noite, enquanto dorme, para em seguida ter a perna mordida por um rato. Ele não merece dinheiro, pois vai usá-lo para beber e, como já vimos, ele não tem razões para isso. Quem tem motivo para isso é o rapaz que ao sair da escola, passou mais um ano sem trabalhar, fazendo cursinho para entrar numa boa universidade de odontologia, essa paga com os impostos de todos nós. 

Não é à toa que é bem raro ver alguns cursos optarem por uma recepção tão pouco criativa e que ignora a função social da Universidade. Nunca vi alunos de História, Geografia, Pedagogia, Serviço Social, Filosofia, Ciências Sociais, entre outros pelas ruas pintados pedindo dinheiro. Eles jamais iriam para a rua competir, e ganhar, em "esmolas", com aqueles que não tem outra opção para conseguir comer mais um dia. E se foram em algum momento, é prova de que falta-lhes um importante requisito para profissões da área de humanas: o humanismo. 

Eu, ao ser abordadas por eles, tento sensibilizá-los para a nossa realidade. Sempre me choca que ainda optem por esse sistema de recepção de calouros, mas... minha profissão é, justamente, ajudar a questionar certas estruturas e práticas da sociedade. Pergunto se eles acham bacana estar nessa posição. Se acham normal que os transeuntes contribuam com altos valores para os trotes e finjam ignorar aqueles à quem não restou nem a esperança. Tento falar um pouco mais alto para, quem sabe, conseguir também atingir pelo menos um transeunte. E, volta e meia, tenho que me segurar para não intervir na doação de alguém ao meu lado, num sinal de trânsito, por exemplo. Encerro pedindo que, quando for a vez dele de organizar o trote, opte por um trote mais solidário, menos "umbiguista". 

Na década de '90 a faculdade de Londrina, no PR, ocupou as páginas policiais dos jornais após um trote de medicina que terminou em violência. A reitoria ameaçou proibir o trote do curso. O centro acadêmico, entidade representativa estudantil, apresentou uma contraproposta: fariam um trote solidário. No ano seguinte quando chegaram os calouros, os veteranos pediram novamente doações, porém, dessa vez, eram doações de sangue. Fizeram jus à função social da universidade. 

Sugiro, então, um exercício para você que concorda com meus argumentos. Da próxima vez que for abordado pelo calouro bata um papo, não dê dinheiro, pense no valor que daria, e siga seu caminho. Poucos metros depois, você certamente encontrará algum pedinte de verdade, doe a ele o valor que você doaria ao calouro. E, quando for a sua vez... tente fazer diferente.





* Pré Vestibular para Negros e Carentes