A semana de volta às aulas, na verdade é um processo, certo? Compram-se livros, estojos, mochilas, tênis, etc. É um verdadeiro natal prolongado para alguns setores do comércio e da sociedade. Para os filhos das classes médias e altas, é claro. Os mesmos que ocupam a maior porcentagem das vagas nas universidades, mesmo com o sistema de cotas.
É nesse período do ano que surgem nas ruas os calouros com o corpo pintado e um copinho de moedas na mão. O clima é de festa. A chegada na universidade é, sem dúvidas, um momento quase mágico. Agora estudaremos aquilo que nos interessa. A partir desse momento, cuidaremos nós mesmos da nossa trajetória educacional. Por um lado, os pais já não podem mais intervir junto à direção ou professores. Por outro lado a liberdade de escolhas aumenta. É na universidade que conheceremos as pessoas que farão parte da nossa vida adulta. Agora o professor não é apenas o chato que te manda guardar o celular, é o seu futuro empregador ou aquele que vai indicar você para o emprego, então, melhor impressioná-lo.
Os calouros tentam nos sensibilizar para doar dinheiro para as choppadas. E, a professora que vos fala, fica muito irritada com tudo isso. Antes de qualquer análise, gostaria de deixar claro que na faculdade que cursei não havia esse sistema. O trote ou recepção de calouros consistia em doação de livros didáticos ao PVNC* e sentar com os veteranos para uma cerveja paga com nosso dinheiro, calouros e veteranos.
Mas afinal, por que razão eu me irrito com os pobres calouros da universidade pública?
Pois a sociedade que defende a justiça com as próprias mãos, que diz "bem feito" ao menino que foi trancado no poste nu e teve a orelha cortada, enquanto assiste ao canal de notícias via gato na TV à cabo, é a mesma que se sensibiliza com a história do "mendigo gato" - branco, louro de olhos azuis - quase um "mendigo gringo".
Qual o destino de uma sociedade que acredita que uma bolsa do governo no valor de R$ 90,00 fará com que o pobre viva "encostado no governo sem trabalhar", que ignora as crianças famintas na rua (que um dia poderão estar trancadas em postes) e doa, sorrindo, R$10,00 para os filhos da elite encherem a cara de álcool na chegada ao curso de medicina?
Acham que não vale a pena dar R$2,00 ao indivíduo que mora na rua, não tem WC, cozinha, comida, colchão. Que é roubado durante a noite, enquanto dorme, para em seguida ter a perna mordida por um rato. Ele não merece dinheiro, pois vai usá-lo para beber e, como já vimos, ele não tem razões para isso. Quem tem motivo para isso é o rapaz que ao sair da escola, passou mais um ano sem trabalhar, fazendo cursinho para entrar numa boa universidade de odontologia, essa paga com os impostos de todos nós.
Não é à toa que é bem raro ver alguns cursos optarem por uma recepção tão pouco criativa e que ignora a função social da Universidade. Nunca vi alunos de História, Geografia, Pedagogia, Serviço Social, Filosofia, Ciências Sociais, entre outros pelas ruas pintados pedindo dinheiro. Eles jamais iriam para a rua competir, e ganhar, em "esmolas", com aqueles que não tem outra opção para conseguir comer mais um dia. E se foram em algum momento, é prova de que falta-lhes um importante requisito para profissões da área de humanas: o humanismo.
Eu, ao ser abordadas por eles, tento sensibilizá-los para a nossa realidade. Sempre me choca que ainda optem por esse sistema de recepção de calouros, mas... minha profissão é, justamente, ajudar a questionar certas estruturas e práticas da sociedade. Pergunto se eles acham bacana estar nessa posição. Se acham normal que os transeuntes contribuam com altos valores para os trotes e finjam ignorar aqueles à quem não restou nem a esperança. Tento falar um pouco mais alto para, quem sabe, conseguir também atingir pelo menos um transeunte. E, volta e meia, tenho que me segurar para não intervir na doação de alguém ao meu lado, num sinal de trânsito, por exemplo. Encerro pedindo que, quando for a vez dele de organizar o trote, opte por um trote mais solidário, menos "umbiguista".
Na década de '90 a faculdade de Londrina, no PR, ocupou as páginas policiais dos jornais após um trote de medicina que terminou em violência. A reitoria ameaçou proibir o trote do curso. O centro acadêmico, entidade representativa estudantil, apresentou uma contraproposta: fariam um trote solidário. No ano seguinte quando chegaram os calouros, os veteranos pediram novamente doações, porém, dessa vez, eram doações de sangue. Fizeram jus à função social da universidade.
Sugiro, então, um exercício para você que concorda com meus argumentos. Da próxima vez que for abordado pelo calouro bata um papo, não dê dinheiro, pense no valor que daria, e siga seu caminho. Poucos metros depois, você certamente encontrará algum pedinte de verdade, doe a ele o valor que você doaria ao calouro. E, quando for a sua vez... tente fazer diferente.
* Pré Vestibular para Negros e Carentes


Belo texto!!! Nada a acrescentar, a nao ser o mesmo sentimento
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