terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Choro



Choro por dentro e por fora. Por dentro pois o choro não precisa virar lágrima para ser doído, para ser concreto. Ás vezes não dá para segurar e, tudo bem, eu não estou nem aí. Ás vezes ele vem para fora mesmo que eu lute, e muito, para guardá-lo dentro. 

Choro por dentro, quando vejo uma senhora acompanhada de um menino, com o pé engessado, descer do ônibus na entrada do morro São Carlos, voltando de um dia inteiro de espera no hospital, e tomando fôlego para chegar lá em cima. Choro por dentro e por fora, quando vejo o sorriso surpreso do mendigo catador no Largo do Machado recebendo o refrigerante gelado de minhas mãos. Aquele refrigerante que eu não quero mais, mas que levo comigo até achar alguém que o deseje. Afinal querer e desejar, volta e meia, são coisas bem diferentes.

Choro quando vejo meninos prendendo outros meninos em postes e cortando suas orelhas como se vivessem em estado de natureza*. Perco a fala como se assistisse a uma versão ao vivo de O Senhor das Moscas*. Choro pensando que nenhum dos meninos, por razões diferentes, entenderia minha comparação. Choro pelo menino negro na calçada do Leblon que olha, distraído, como se por um segundo esquecesse de tudo, o brinquedo tão bacana na mão daquele outro menino, branco que espera o sinal fechar. 

Choro quando vejo a injustiça e a sordidez estampados na capa da revista, na primeira página do jornal. Choro quando percebo os tantos que reclamam e continuam consumindo a sordidez e a injustiça do jornal e da revista. Choro ainda mais quando vejo que, muita gente que poderia ir além, se detém, ali, na frase, na parte, na legenda da foto. Choro em pensar que, tantas vezes, o autor da manchete se satisfaz tanto com a incerteza e a ignorância, quanto seu leitor.

Choro, claro, quem não (?), ao ver tanta coisa mudar de mão, perder o rumo, o tom. Choro ao passar pelo caminho que fazia para ir à escola e noto a padaria tradicional, fechada, a placa de aluga-se/vende-se. Choro, perdida numa cidade de referências pré-fabricadas. Sinto-me como se fosse uma criança que não sabe para onde ir. Choro quando lembro quem eu sonhava que seria possível ser. 

Choro sem chôro na feira. Sem arte na rua. Enquanto tudo parece azul, cada vez mais, fica quem sem cor e sem som. Choro pelo fato de existir a necessidade de se recorrer à justiça para garantir às pessoas o direito ao seu espaço. Choro quando o umbigo é maior que o nós. Quando percebo que tudo de nada importa, afinal, ainda tem cerveja. Fica lá o trapezista de todos nós solto no ar enquanto dá, ou enquanto houver chão. Fica sem palco o ator. Fica sem harmonia a canção. Fica um marasmo só. 

Choro quando vejo tantas coisas de que me orgulhei perderem a função. Parece não haver relação entre as coisas com as quais se compactua e o que se prega. Choro, bastante, pela minha profissão. Pelo que fizeram dela, com ela. Choro, então, por um pouco de coerência enquanto continuo atenta para não perdê-la de vista. 

Choro, às vezes de agonia. Choro de ver cada vez mais calada aquela voz.  De perceber que por lentes distorcidas, sem muito foco nos confortamos em abrir, mesmo, mão da cidadania. Armamos sempre esse desbotado "circo sem futuro"* onde somos os palhaços sem sorriso, somos o desânimo dos animais esquálidos. Choro porque continuamos comprando discursos vis, tristes, secos, envelhecidos. 

Essa semana choro de indignação, choro em solidariedade, choro de dor, de verdade, choro de medo, choro por mim, pelo futuro, por todos e tantos nós. Choro, agora, realmente para botar para fora. Choro para fugir, para não encontrar. Choro, por fim, para ver se quando eu abrir os olhos, tudo isso foi embora.




*estado de natureza - Momento anterior ao Estado em que valia apenas a lei da força e não havia justiça. Período que precede o "contrato social".
leia mais sobre estado de natureza

* O Senhor das Moscas - Lord of the Flies - escrito por William Golding, 1954.
Filme (Leg, Dir. Peter Brook)

* Menção à música: "O Palhaço do Circo sem Futuro" - Cordel do Fogo Encantado


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