quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Laico sim, ecumênico não.





Todas as manifestações pela tolerância religiosa são de IMENSA importância, nos dias de hoje.
E o fundamentalismo não é privilégio nosso, não. Mesmo em um dos berços da liberdade religiosa do mundo, os EUA, o fundamentalismo de todas as ordens mata. Em países de tradição autoritária como o nosso, ou a Rússia, o fundamentalismo se traduz em leis que obrigam a todos nós vivermos sob os preceitos religiosos dos outros. Além é claro à da violência, intrínseca a ideia de dogmática da verdade absoluta, das religiões.

Diante de todas as guerras e matanças promovidas pelos ideais religiosos na história da humanidade, ver líderes e fiéis das mais diversas orientações religiosas juntos, pregando a tolerância, é bonito e acalma o coração. Dá esperança, pois permite pensar que, apesar de todo o dogmatismo essencial da religião, é possível um modo "Live and let live!" de lidar com a diversidade. Embora no segundo seguinte a esperança se desfaça.

Entretanto, percebo também, nesses eventos, o quanto estamos distantes de compreender a liberdade, a tolerância e, principalmente o Estado Laico. Defende-se, aparentemente, a liberdade religiosa, mas no sentido da liberdade de escolher uma, entre as religiões existentes, ou de fazer escolhas à la carte, pinçando nas religiões e filosofias da espiritualidade o que bem lhe aprouver, até mesmo criar uma nova. Nesses eventos o discurso é o de um Estado ecumênico e não laico.

Vivemos em um país que se declara, em sua maioria, cristão. Mas que, desde os tempos do rei, como diz Manoel Antônio de Almeida no delicioso romance, (que é quase uma etnografia do Rio imperial), Memórias de um Sargento de Milícias, da elite aos escravos, os terreiros sempre foram frequentados pelos brasileiros. Somos herdeiros da tradição ibérica portuguesa, que se aliou a Igreja Católica na Contrarreforma, sendo um dos locais onde os Tribunais da Santa Inquisição foram mais relevantes. Ao longo de nossa história, solidificamos no senso comum essa ideia da nação cristã, apesar de todos os sincretismos.

O senso comum nacional opera com a noção de que a “espiritualidade” é um bem, e que é importante tê-la. Parte-se do princípio que de que todos têm uma religião, mesmo que seja diferente da sua. Tanto é assim, que é comum a pergunta: “Qual a sua religião?” e não “Você tem uma religião?”. Da mesma forma que, quando morre algum parente são poucas as declarações de “meus sentimentos/pêsames” e muitos os discursos de vida após a morte. Eu, que sou ateia declarada, já ouvi até coisas como: “Eu sei que você não acredita, mas ele/a foi ao encontro de deus...”. Agora imagina o contrário. Imaginou? Pois é... o ateu seria taxado de desrespeitoso... mas, tudo bem... a gente ouve aquilo tudo, faz que sim com a cabeça e segue.

            Essa digressão do parágrafo acima, é só uma tentativa de exemplificar como, em geral, por aqui, parte-se do princípio de que todos acreditam em algum mundo sobrenatural. E que, essa suposição, traz no subtexto a crença de que a religião (ou espiritualidade) é como fígado, todo mundo possui. Mais ainda, confunde-se ética com religião. Como se sem a religião, ou seja, sem o medo do castigo divino, o ser humano não fosse capaz de viver em sociedade respeitando os seus limites. Portanto traduz-se “laico” por “ecumênico”.

            Sempre que há contestação acerca de uma lei que viola o laicismo constitucional, os argumentos contra a suposta lei são de ordem ecumênica, e não laica. Em diversos casos divulgados pela mídia, em estados e municípios brasileiros, quando se discutiu instituir que escolas incluíssem liturgias cristãs, ou aulas de religião no currículo, as emendas propostas, eram no sentido de incluir outras religiões. Estado ecumênico é aquele cuja política educacional institui religião como disciplina obrigatória, com currículo que abarque as diversas religiões. Estado laico não inclui a religião na política educacional.  E sabe onde foi que me ensinaram isso? Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, instituição religiosa a quem devo toda a minha formação profissional.

            Foi na PUC-Rio, que cursando uma disciplina obrigatória denominada “O homem e o fenômeno religioso” o padre, que era o professor, explicou a postura da universidade acerca das disciplinas de teologia. Lá aprendi sobre muitas religiões, mas principalmente sobre o respeito à liberdade religiosa e ao Estado laico. Nunca escondi que era ateia, e nesse quesito, foi lá onde me senti mais respeitada, principalmente pelos padres professores e colegas. Claro, que há os radicais, mas o pensamento deles não interfere com a liberdade de expressão, e de produção de conhecimento, de acordo com a minha experiência.

            Voltando à questão inicial, tribunais com crucifixos, não condizem com um Estado laico. Mas, tampouco seria condizente se os tribunais sustentassem panteões de diversas religiões. Em um Estado laico, as religiões não estão todas representadas. Ao contrário, elas são tema de debate público, apenas com relação à liberdade de exercê-la, respeitando-se princípios primordiais como a vida, por exemplo. A religião em Estados que optam pela laicidade não deve, principalmente, pautar decisões políticas que se transformam em leis que obrigam a todos, violando a liberdade de consciência, observados seus limites de ação.

Nenhuma liberdade de consciência é plena quando se traduz em ações que dela derivam. Somos limitados pela lei. O limite é dado em função da ideia de que, todos são indivíduos de igual valor, em tese.  Mas não é assim na realidade, há várias clivagens e hierarquias sociais que se entrelaçam e combinam, escalonando o valor dos indivíduos. Com relação à religião não é diferente, algumas são mais fortes do que outras. Nesse suposto gráfico que escalona as religiões, as afro-brasileiras estariam abaixo daquelas monoteístas. E os ateus, ou estariam fora do gráfico, ou em algum patamar negativo, abaixo das afro-brasileiras.

Dessa forma, o discurso que se propaga em mobilizações como a ocorrida em Copacabana em setembro de 2017, precisa da presença das associações de ateus. Hoje elas existem, e lutam pelo Estado Laico. Acabam muitas vezes reagindo de uma forma ruim, pouco profícua para seus objetivos norteadores. Entendo que é cansativo. A maioria das pessoas que eu convivo, não pauta sua vida sua vida pela religião, mas imagino que há ateus que vivem rodeados de questionamentos, em universos muito diferentes do meu, aí acabam reagindo com sarcasmo.  Mas é preciso ser mais racional, e engolir alguns sapos em prol de conquistas maiores e mais profundas. 

Uma série de perguntas, e afirmações, são feitas para nós, e não são consideradas desrespeito (recentemente uma amiga que sabe que sou ateia me enviou um salmo pela internet). Mas o contrário quase sempre é ofensivo. Só recentemente expressões como “não tem deus no coração” foram publicamente denunciadas pelo preconceito contido nelas e punidas. É preciso focar em questões como a divulgação da diferença entre laico e ecumênico. E lutar pelos avanços simbólicos, que colaboram com a distinção desses conceitos, como a exclusão de símbolos e liturgias religiosos nas casas públicas, na moeda, nas escolas públicas. Lutar contra benefícios fiscais concedidos às instituições religiosas, enquanto livrarias, centros e institutos culturais e artísticos, etc. não recebem a mesma proteção, a despeito de sua função social.

Os religiosos costumam dizer que um Estado Laico não é um Estado ateu. E nisso têm toda a razão. Mas há, ainda assim uma confusão nesse discurso, pois da mesma forma que é possível um Estado ter uma religião oficial e liberdade religiosa, também seria um Estado ateu com liberdade religiosa, não? Um Estado ateu assumiria como princípio, como pilar, a ideia de que deus não existe. Um Estado Laico não possui uma posição oficial, pois entende que uma religião, ou todas elas, não devem pautar leis que ferem liberdades individuais.

O S.T.F., tribunal de maior autoridade no país, que decide acerca da interpretação da Constituição Brasileira, decidiu ontem (27/09/2017) pelo ensino religioso confessional nas escolas. Decidiu assim, em função da abertura que há na Carta Magna para tal interpretação. Vale dizer, por ser o nosso laicismo uma bizarrice, ou nas palavras do professor Luis Felipe Miguel (UNB), em sua página no Facebook:

“O Estado laico no Brasil sempre foi meio vagabundo - tem invocação de Deus na Constituição, tem Deus na cédula, tem crucifixo nos tribunais, tem reza em escola pública. Outro dia estive num posto de saúde e deparei com uma tela com a imagem de Jesus Cristo feita num estilo de imitação de Romero Britto, um negócio de fazer qualquer um enfartar. Mas a decisão do STF é um enorme passo atrás e joga todos os não-crentes na posição de párias.”
Parte superior do formulário

     Somando tal decisão às reformas do Ensino Médio, da CLT e eleitoral do governo Temer o que temos é a receita para um desastre. A relação entre IDH e religião é inversamente proporcional, e diversos estudos atestam isso. Países cuja população em sua maioria não é religiosa, ou se é espiritualizada não é vinculada a instituições religiosas ou religiões pré-definidas, como os países nórdicos e a Holanda, ocupam as primeiras posições mundiais no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano. Enquanto países de culturas altamente permeadas pela religião, com instituições fortes, em geral, são autoritários e desiguais, como é o caso da África do Sul ou do Oriente Médio.



     Banindo direitos e conteúdos escolares e ocupando cadeiras com líderes religiosos, além de todas as implicações para o poder aquisitivo do trabalhador, trazidas pelas reformas, o que teremos será, se já não é, bem próximo de um Estado teocrático que não incorpora a liberdade religiosa ou de consciência. A instituição religiosa que agora ocupa a prefeitura do Rio de Janeiro possui um grupo paramilitar! De modo que, ou as demais religiões adotam um discurso laico, abandonando o ecumenismo, e os ateus se organizam, ou em breve teremos as prerrogativas preenchidas para os pedidos de asilo político. 




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