Todas as manifestações pela
tolerância religiosa são de IMENSA importância, nos dias de hoje.
E o fundamentalismo não é privilégio
nosso, não. Mesmo em um dos berços da liberdade religiosa do mundo, os EUA, o
fundamentalismo de todas as ordens mata. Em países de tradição autoritária como
o nosso, ou a Rússia, o fundamentalismo se traduz em leis que obrigam a todos
nós vivermos sob os preceitos religiosos dos outros. Além é claro à da
violência, intrínseca a ideia de dogmática da verdade absoluta, das religiões.
Diante de todas as guerras e
matanças promovidas pelos ideais religiosos na história da humanidade, ver
líderes e fiéis das mais diversas orientações religiosas juntos, pregando a
tolerância, é bonito e acalma o coração. Dá esperança, pois permite pensar que,
apesar de todo o dogmatismo essencial da religião, é possível um modo "Live
and let live!" de lidar com a diversidade. Embora no segundo seguinte a
esperança se desfaça.
Entretanto, percebo também,
nesses eventos, o quanto estamos distantes de compreender a liberdade, a
tolerância e, principalmente o Estado Laico. Defende-se, aparentemente, a
liberdade religiosa, mas no sentido da liberdade de escolher uma, entre as
religiões existentes, ou de fazer escolhas à
la carte, pinçando nas religiões e filosofias da espiritualidade o que bem
lhe aprouver, até mesmo criar uma nova. Nesses eventos o discurso é o de um
Estado ecumênico e não laico.
Vivemos em um país que se declara,
em sua maioria, cristão. Mas que, desde os tempos do rei, como diz Manoel
Antônio de Almeida no delicioso romance, (que é quase uma etnografia do Rio
imperial), Memórias de um Sargento de
Milícias, da elite aos escravos, os terreiros sempre foram frequentados
pelos brasileiros. Somos herdeiros da tradição ibérica portuguesa, que se aliou a Igreja
Católica na Contrarreforma, sendo um dos locais onde os Tribunais da Santa
Inquisição foram mais relevantes. Ao longo de nossa história, solidificamos no
senso comum essa ideia da nação cristã, apesar de todos os sincretismos.
O senso comum nacional opera com
a noção de que a “espiritualidade” é um bem, e que é importante tê-la. Parte-se
do princípio que de que todos têm uma religião, mesmo que seja diferente da
sua. Tanto é assim, que é comum a pergunta: “Qual a sua religião?” e não “Você
tem uma religião?”. Da mesma forma que, quando morre algum parente são poucas as
declarações de “meus sentimentos/pêsames” e muitos os discursos de vida após a
morte. Eu, que sou ateia declarada, já ouvi até coisas como: “Eu sei que você não acredita, mas ele/a
foi ao encontro de deus...”. Agora imagina o contrário. Imaginou? Pois é... o
ateu seria taxado de desrespeitoso... mas, tudo bem... a gente ouve aquilo
tudo, faz que sim com a cabeça e segue.
Essa
digressão do parágrafo acima, é só uma tentativa de exemplificar como, em geral,
por aqui, parte-se do princípio de que todos acreditam em algum mundo
sobrenatural. E que, essa suposição, traz no subtexto a crença de que a
religião (ou espiritualidade) é como fígado, todo mundo possui. Mais ainda,
confunde-se ética com religião. Como se sem a religião, ou seja, sem o medo do
castigo divino, o ser humano não fosse capaz de viver em sociedade respeitando
os seus limites. Portanto traduz-se “laico” por “ecumênico”.
Sempre que
há contestação acerca de uma lei que viola o laicismo constitucional, os
argumentos contra a suposta lei são de ordem ecumênica, e não laica. Em diversos
casos divulgados pela mídia, em estados e municípios brasileiros, quando se
discutiu instituir que escolas incluíssem liturgias cristãs, ou aulas de
religião no currículo, as emendas propostas, eram no sentido de incluir outras
religiões. Estado ecumênico é aquele cuja política educacional institui
religião como disciplina obrigatória, com currículo que abarque as diversas religiões.
Estado laico não inclui a religião na política educacional. E sabe onde foi que me ensinaram isso? Na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, instituição religiosa a
quem devo toda a minha formação profissional.
Foi na
PUC-Rio, que cursando uma disciplina obrigatória denominada “O homem e o
fenômeno religioso” o padre, que era o professor, explicou a postura da
universidade acerca das disciplinas de teologia. Lá aprendi sobre muitas
religiões, mas principalmente sobre o respeito à liberdade religiosa e ao
Estado laico. Nunca escondi que era ateia, e nesse quesito, foi lá onde me
senti mais respeitada, principalmente pelos padres professores e colegas.
Claro, que há os radicais, mas o pensamento deles não interfere com a liberdade
de expressão, e de produção de conhecimento, de acordo com a minha experiência.
Voltando à
questão inicial, tribunais com crucifixos, não condizem com um Estado laico.
Mas, tampouco seria condizente se os tribunais sustentassem panteões de
diversas religiões. Em um Estado laico, as religiões não estão todas representadas.
Ao contrário, elas são tema de debate público, apenas com relação à liberdade
de exercê-la, respeitando-se princípios primordiais como a vida, por exemplo. A
religião em Estados que optam pela laicidade não deve, principalmente, pautar
decisões políticas que se transformam em leis que obrigam a todos, violando a
liberdade de consciência, observados seus limites de ação.
Nenhuma liberdade de consciência
é plena quando se traduz em ações que dela derivam. Somos limitados pela lei. O
limite é dado em função da ideia de que, todos são indivíduos de igual valor,
em tese. Mas não é assim na realidade,
há várias clivagens e hierarquias sociais que se entrelaçam e combinam,
escalonando o valor dos indivíduos. Com relação à religião não é diferente,
algumas são mais fortes do que outras. Nesse suposto gráfico que escalona as
religiões, as afro-brasileiras estariam abaixo daquelas monoteístas. E os
ateus, ou estariam fora do gráfico, ou em algum patamar negativo, abaixo das
afro-brasileiras.
Dessa forma, o discurso que se
propaga em mobilizações como a ocorrida em Copacabana em setembro de 2017,
precisa da presença das associações de ateus. Hoje elas existem, e lutam pelo
Estado Laico. Acabam muitas vezes reagindo de uma forma ruim, pouco profícua
para seus objetivos norteadores. Entendo que é cansativo. A maioria das pessoas
que eu convivo, não pauta sua vida sua vida pela religião, mas imagino que há
ateus que vivem rodeados de questionamentos, em universos muito diferentes do
meu, aí acabam reagindo com sarcasmo. Mas é preciso ser mais racional, e engolir alguns sapos em prol de conquistas maiores e mais profundas.
Uma série de perguntas, e
afirmações, são feitas para nós, e não são consideradas desrespeito
(recentemente uma amiga que sabe que sou ateia me enviou um salmo pela
internet). Mas o contrário quase sempre é ofensivo. Só recentemente expressões
como “não tem deus no coração” foram publicamente denunciadas pelo preconceito
contido nelas e punidas. É preciso focar em questões como a divulgação da
diferença entre laico e ecumênico. E lutar pelos avanços simbólicos, que
colaboram com a distinção desses conceitos, como a exclusão de símbolos e
liturgias religiosos nas casas públicas, na moeda, nas escolas públicas. Lutar
contra benefícios fiscais concedidos às instituições religiosas, enquanto
livrarias, centros e institutos culturais e artísticos, etc. não recebem a
mesma proteção, a despeito de sua função social.
Os religiosos costumam dizer que
um Estado Laico não é um Estado ateu. E nisso têm toda a razão. Mas há, ainda
assim uma confusão nesse discurso, pois da mesma forma que é possível um Estado
ter uma religião oficial e liberdade religiosa, também seria um Estado ateu com
liberdade religiosa, não? Um Estado ateu assumiria como princípio, como pilar,
a ideia de que deus não existe. Um Estado Laico não possui uma posição oficial,
pois entende que uma religião, ou todas elas, não devem pautar leis que ferem
liberdades individuais.
O S.T.F., tribunal de maior
autoridade no país, que decide acerca da interpretação da Constituição Brasileira,
decidiu ontem (27/09/2017) pelo ensino religioso confessional nas escolas.
Decidiu assim, em função da abertura que há na Carta Magna para tal
interpretação. Vale dizer, por ser o nosso laicismo uma bizarrice, ou nas
palavras do professor Luis Felipe Miguel (UNB), em sua página no Facebook:
“O Estado laico no Brasil sempre
foi meio vagabundo - tem invocação de Deus na Constituição, tem Deus na cédula,
tem crucifixo nos tribunais, tem reza em escola pública. Outro dia estive num
posto de saúde e deparei com uma tela com a imagem de Jesus Cristo feita num
estilo de imitação de Romero Britto, um negócio de fazer qualquer um enfartar.
Mas a decisão do STF é um enorme passo atrás e joga todos os não-crentes na
posição de párias.”
Somando tal decisão às reformas do Ensino Médio, da CLT e
eleitoral do governo Temer o que temos é a receita para um desastre. A relação
entre IDH e religião é inversamente proporcional, e diversos estudos atestam
isso. Países cuja população em sua maioria não é religiosa, ou se é
espiritualizada não é vinculada a instituições religiosas ou religiões
pré-definidas, como os países nórdicos e a Holanda, ocupam as primeiras
posições mundiais no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano. Enquanto
países de culturas altamente permeadas pela religião, com instituições fortes,
em geral, são autoritários e desiguais, como é o caso da África do Sul ou do
Oriente Médio.
Banindo direitos e conteúdos escolares e ocupando cadeiras
com líderes religiosos, além de todas as implicações para o poder aquisitivo do
trabalhador, trazidas pelas reformas, o que teremos será, se já não é, bem
próximo de um Estado teocrático que não incorpora a liberdade religiosa ou de
consciência. A instituição religiosa que agora ocupa a prefeitura do Rio de
Janeiro possui um grupo paramilitar! De modo que, ou as demais religiões adotam
um discurso laico, abandonando o ecumenismo, e os ateus se organizam, ou em
breve teremos as prerrogativas preenchidas para os pedidos de asilo político.




